Esse artigo se deu a partir de um debate realizado na universidade onde leciono, com as propostas de ambos os candidatos à Presidência da República referente à política urbana. Aqui, propõe-se discutir o que tanto Fernando Haddad como Jair Bolsonaro previram em seus respectivos planos de governo para o desenvolvimento das cidades, apontando diferenças e as consequências dessas medidas em uma perspectica de curto e médio prazo.
O debate, por sua vez, foi motivado por um lamentável fato ocorrido com um aluno da instituição que, dentro dos limites da universidade, sofreu claro assédio moral de um policial militar no dia seguinte do primeiro turno. Preocupada com os desdobramentos dessa postura, a Universidade, além de outras providências, optou por realizar aquilo que cabe, ou deveria caber, às instituições de ensino superior, isto é, suscitar um debate de ideias distintas, de forma clara e democrática, explicitando conflitos e evitando confrontos. Coube a dois professores da própria casa, cada um coerente com seus ideais pessoais, defender cada uma das propostas.
Aqui, tem-se aquela por mim defendida, sobre o Plano de Fernando Haddad. Segue a argumentação.

Por que discutir cidades?

Na amplitude de um debate eleitoral onde questões como educação, saúde, economia, segurança e problemas sócias predominam (ou deveriam predominar) na disputa, a questão urbana se coloca como território fundamental onde as demais questões se materializam e, por isso, coloca-se como locus principal dos temas citados. Ademais, se considerarmos a evolução da população urbana no Brasil frente à diminuição percentual da população rural ao longo do século XX e com as projeções futuras, como mostra a imagem a seguir, identifica-se a centralidade da discussão sobre as políticas urbanas nesse momento eleitoral.

Imagem 01: Evolução percentual da população urbana e rural no Brasil (1940-2050)


Fonte: IBGE

Inicialmente, há que se salientar dois importantes avanços no campo da regulação territorial, ocorridos em âmbito nacional nos últimos vinte anos, envolvendo portanto, os governos FHC e Lula.
Em primeiro lugar, a aprovação da Lei 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, que regulamentou o capítulo de política urbana da Constituição Federal (Artigos 182 e 183), representou um inegável marco na construção de cidades mais justas e, ainda que dezessete anos de sua promulgação, muita coisa ainda há de ser feita.
Longe de resolver a questão urbana em sua totalidade, o Estatuto foi o responsável por imprimir uma nova dinâmica na aplicação cotidiana dessas políticas setoriais uma vez que disponibiliza uma série de instrumentos às variadas instâncias governamentais que possibilitam a construção de cidades mais justas.
Importante ressaltar, que o arcabouço previsto nessa legislação, necessário de ser ratificado pelas legislações municipais, baseou-se em muito, ao contrário do que induz pensar o senso comum, em legislações europeias, de países inseridos na dinâmica capitalista e, não raro de viés liberal, que elaboraram esses instrumentos justamente para se contrapor a uma dinâmica influenciada exclusivamente para o “mercado”, em outras palavras, o Estatuto e as legislações análogas europeias apenas se justificam em contextos onde o capitalismo impere e, por essa razão, não podem ser vistos como uma “ameaça de implantação do socialismo”.
Ocorre que toda a aplicação do Estatuto da Cidade se baseia em um princípio previsto em seu artigo segundo, “A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Sem esse princípio, tornam-se injustificadas as medidas previstas naquela lei.
Nesse ponto, surge a primeira preocupação frente aos Planos de Governo dos candidatos, emais especificamente em relação ao plano de Jair Bolsonaro que, na página 22 do documento elaborado, explicita:

“7º RETIRAR da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81”.

Pode-se afirmar assim, que, em cumprindo aquilo que está estabelecido em seu plano de governo e em uma eventual vitória, Bolsonaro acabaria com o princípio da função social da propriedade, representando um claro retrocesso em nossa dinâmica urbana, sobretudo se considerarmos que países como a liberal Holanda já haviam incorporado esse ideal desde 1.901.
Outro ponto de destaque das duas últimas décadas trata de um aprimoramento institucional realizado a partir do início do Governo Lula (2003-2010), com a criação do Ministério das Cidades que reuniu em uma única pasta, os setores mais diretamente ligados à questão urbana.
Mais que uma ação simbólica, a criação do Ministério das Cidades representou uma maior articulação de políticas públicas e, por essa, razão, da otimização dos recursos empregados.
Com exemplo de resultados, temos que segundo o SNIS , tomando apenas o tratamento de esgoto como exemplo, um incremento de quase 76% da população atendida, passando de 58 milhões de habitantes em 2002 para pouco mais de 102 milhões em 2016 (quando se encerra a série histórica).
Também, ao se estabelecer parâmetros claros para a liberação de recursos oriundos do Orçamento Geral da União (OGU), vinculando-os como no caso dos resíduos sólidos e mobilidade urbana, a existência de planos municipais setoriais, introduz-se uma lógica republicana que, além de otimizar, constrói ferramentas que dificultam a implantação de práticas corruptas.
Sobre os candidatos nesse ponto, há que se acentuar as diferenças de posturas.
Jair Bolsonaro, dentro da lógica liberal de “enxugamento” da máquina pública e da redução de pastas, expõe sua intenção de acabar com o Ministério das Cidades. A reportagem do site G1 de 28 de agosto desse ano coloca “Bolsonaro diz que se eleito extinguirá Ministério das Cidades e mandará dinheiro diretamente para prefeituras”.
Essa medida, se aplicada, deve ser entendida como um ponto final no esforço de articulação de políticas urbanas e, em grande medida, de incentivo de transmissão de recursos entre instâncias, sem o devido controle social e em prego de parâmetros e condições claras e, por essa razão, aumentando as possibilidades de práticas corruptas.
No sentido oposto, o plano de Fernando Haddad prevê uma maior articulação entre essas políticas e a adequação à Nova Agenda de Política Urbana da ONU o que, pragmaticamente, significa maiores possibilidades de obtenção de recursos externos, muitos deles disponibilizados a fundo perdido.
Demonstra ademais, preocupação com a qualificação técnica dos servidores municipais e estaduais, pre condição para a diminuir a morosidade e aumentar a qualidade dos projetos implantados.
Diz o plano do candidato petista:

“- Maior articulação entre as políticas de planejamento territorial, saneamento,
regulação fundiária, habitação e mobilidade urbana,
– Novo Marco Regulatório de Desenvolvimento Urbano, (referência a Nova Agenda Urbana
aprovada na Conferência das Nações Unidas para Habitação e Desenvolvimento Urbano
Sustentável, em 2016), garantindo o direito à cidade, a democratização do espaço
público e a sustentabilidade urbana.
– Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) aprimoramento dos mecanismos de
cooperação federativa, de sorte a compatibilizar as agendas das pequenas, médias e
grandes cidades,
– SNDU, instituirá programa de assistência técnica para a qualificação e o aumento da
capacidade técnica e de gestão dos municípios e estados, que, por sua vez, serão
estimulados a ampliar sua contribuição no fortalecimento da capacidade institucional e
de gestão do poder local, principal responsável pelas políticas urbanas”

É relevante apontar que a posição das entidades classistas dos urbanistas (IAB e CAU, principalmente) vão ao encontro do que propõe Haddad, rechaçando por consequência as ideias apontadas por Bolsonaro.

Que cidade herdamos, que cidades deixaremos?

Cabe ainda nessa discussão, acompanhar o modelo de cidade herdado desde o processo de redemocratização e o que devemos fazer para evitar que equívocos se repitam.
Nesse caso, tomando o exemplo da cidade de São Paulo, percebemos a partir das imagens seguintes, com a evolução da mancha urbana e das favelas paulistanas, que o período de maior ampliação de ambas se deu durante a ditadura militar.
Mais que o acaso, essa é a consequência de um política de indução do êxodo rural feito pelo regime ditatorial do período que, ao mesmo tempo que visava construir um “exército de reserva” para amenizar pressões de aumento salarial nas cidades em momento de grande aquecimento econômico e desenvolvimento industrial, propiciava no campo a ampliação da fronteira agrícola, baseada na grande propriedade e na mecanização sem uma maior pressão pela reforma agrária, realizada em quase todos os países americanos em algum momento, incluindo aí, o próprio Estados Unidos.
Essas imagens deixam claro que o desenvolvimento econômico não é por si só, sinônimo de desenvolvimento sócio territorial, pois as cidades do período de redemocratização caracterizaram-se por uma urbanização esparsa e precária, com altíssimos graus de ilegalidade e incapacidade estatal de prover de infraestrutura adequada, sobretudo na “década perdida” de 1980, esse contingente que chegava ao meio urbano.

Imagem 02: Evolução da mancha urbana paulistana (1.870-1.995)

Fonte: Geosampa

Imagem 03: Evolução das favelas em São Paulo (1.930-2.014)
Fonte: Geosampa

A resolução desse “passivo social”, apartado da lei, só pode ser resolvido através do diálogo com os representantes dessa população e com a oferta de moradia para aqueles que a “dinâmica do mercado” não alcança.
A preocupação explicita no Programa de Fernando Haddad em corrigir pontos do programa Minha Casa, Minha Vida com a ampliação das modalidades Rural e Entidades vai nessa direção. Diz o plano do petista:

“Garantido o direito à moradia
Aperfeiçoamento do PMCMV, fortalecimento das modalidades rural e Entidades, elaboração da Política Nacional de Regularização Fundiária e a formulação de um programa de Locação Social”

Porém aqui, também os pontos de vista, expressos nos respectivos planos de governo, mostram-se divergentes e, em um dos casos, extremamente preocupante.
Além de não ser encontrada no plano de Bolsonaro, sequer uma menção as palavras “habitação” ou “moradia”, o documento não deixa dúvida sobre a relação a ser estabelecida com os movimentos sociais de reforma urbana e agrária e suas estratégias consagradas de reivindicação e enfrentamento. Diz o plano:

“6º Tipificar como terrorismo as invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro”.

Essa posição remonta há quase um século onde, no governo de Arthur Bernardes (1922-1926), a questão social era deliberadamente tratada como “caso de polícia”, desconsiderando aspectos históricos que advém desde a Lei de Terras de 1.850, que instituiu, conforme aponta a tese de José Carlos de Souza Martins, a substituição da terra pelo escravo como principal bem de acumulação brasileiro.
Passa também, ainda que com suave mudança partir de 2003, pelo enorme descontrole público sob suas terras (devolutas), dentro de um pacto que fomentou a acumulação de propriedades urbanas e rurais nas mãos de poucos, não raro com a omissão estatal e a anuência cartorial.
O resultado no campo significou uma das maiores concentrações de terra do planeta e, nas cidades como mostra o IBGE, um número de imóveis vagos superior ao número de famílias sem teto.

Conclusões e preocupações…

Frente ao exposto, algumas ideias se apresentam no horizonte, propondo por um lado caminhos a serem seguidos e qual dos dois mais se mostra preparado a esse desafio e, por outro, atemorizando no caso de uma eventual vitória do outro.
Em primeiro lugar, tem-se que a cidade voltada exclusivamente para o mercado, sem regulações que impeçam ou controlem determinadas ações, é intrinsecamente excludente como apontam autores como Santos, Harvey, Maricato, Rolnik entre outros.
Em segundo lugar, o ente que por excelência deve regular essa ação é o Estado e, para isso, princípios como a manutenção da função social da cidade e da propriedade devem ser mantidos e, os instrumentos urbanísticos, aperfeiçoados e intensificados.
Em terceiro lugar, essa regulação deve ocorrer através de profunda articulação, sobretudo se considerarmos a complexidade e diversidade de todo o território nacional, com suas peculiaridades e diferenças.
Finalmente, um último aspecto passa pela concepção que, para a construção de cidades mais justas, é condicional o diálogo com os cidadãos e movimentos, sendo sua criminalização a contramão do que se almeja.

*Geraldo Moura – Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1998), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2002), mestrado em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e Doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de São Paulo (2016). Foi Diretor de Planejamento e Projetos em Guarulhos (2004-2008), Secretário Adjunto de Transportes e Vias Públicas em São Bernardo do Campo (2009-2010), onde coordenou o Programa de Transporte Urbano com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Gerente de Projetos na TTC Engenharia (2011). Atualmente é sócio proprietário da Planmur – Planejamento. Mobilidade e Urbanismo, integra a diretoria do Ruaviva – Instituto da Mobilidade Sustentável e é Professor de Urbanismo da Universidade Anhembi-Morumbi.
** Com colaboração dos alunos Guilherme Vieira, Isabel Barbosa, Paula Benachio e Julia O´Donnell

A questão urbanística nos Planos de Governo de Haddad e Bolsonaro, perspectivas e preocupações* **
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2 ideias sobre “A questão urbanística nos Planos de Governo de Haddad e Bolsonaro, perspectivas e preocupações* **

  • 2018-10-21 em 19:10
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    Geraldo excelente gostaria de ter acesso mais artigos dessa qualidade parabéns para. Vice diz demais um grande abraço

  • 2018-10-22 em 10:18
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    Ótima análise, o Arquiteto e Urbanista Geraldo Moura aponta de maneira bastante clara e objetiva as diferenças e antagonismos (em relação aos aspectos urbanos) contidos nos Planos de governo dos dois candidatos à presidência: Haddad e Bolsonaro.

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