Esse artigo se baseia no trabalho realizado pelo aluno Guilherme Vieira, para o nono semestre em seu Trabalho Final de Graduação.
Ao contrário do que o título indica, não se trata de uma crítica à ilha caribenha justamente em um momento que sua colaboração em uma área tão fundamental como a saúde pública é tristemente rechaçada pelo futuro governo.
Tão pouco Cuba é aqui abordada, mas se trata de uma pesquisa sobre as origens de conceitos e instrumentos presentes no Estatuto da Cidade. Lei Federal n° 10257/2001, que regulamentou o capítulo de política urbana da Constituição Federal.
Serão expostos aqui, exemplos de legislações estrangeiras no qual o Estatuto da Cidade foi amparado. Ademais, conforme será visto, ao contrário do que impera no discurso corrente, os mecanismos de controle da propriedade privada existentes nessas legislações são características de países capitalistas, com economia de mercado e algum grau de propriedade privada.
Vale ressaltar que a aplicação dessas ferramentas urbanas tornar-se-iam inócuas em outros contextos, como em sociedades de economia planificada e sem propriedade privada da terra, pois atuam justamente a partir da existência dessa propriedade da terra urbana, colocando limites, garantindo espaços para setores que não o teriam se apenas imperasse a lógica mercantil ou ainda, extraindo para o Poder Público, parte da mais valia trazida por investimentos e ações estatais nas proximidades de determinadas glebas ou terrenos.
A pertinência dessa situação ganha ainda mais relevância em um momento onde questões chaves dessa legislação são colocadas à prova a partir do conteúdo presente no Programa de Governo do presidente recentemente eleito.
Segue a argumentação.

A função social da cidade e da propriedade

Primeiramente, tem-se que a aplicação de todos os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, além da necessária regulamentação na esfera municipal, baseia-se principalmente em uma diretriz presente em seu artigo segundo:

“Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”

Isso significa que, segundo o que está previsto nos Planos Diretores urbanos municipais e demais legislações (Leis de Uso, Ocupação e Parcelamento; Código de Obras e Edificações etc.), existem condições que limitam as possibilidades de utilização da propriedade quando esta fere o princípio da função social. É, em última análise, uma relativização da utilização e ocupação indiscriminada da propriedade por aqueles que a detêm.
Conforme citado em outro artigo nesse blog, essa situação contraria diametralmente o que foi exposto do Plano de Governo do presidente eleito que estabelece como uma de suas propostas “RETIRAR da Constituição qualquer relativização da propriedade privada”.
Ocorre que a ideia da função social já está incorporada em outros locais há muito mais tempo.
Em países como a Holanda ou como a liberal Inglaterra, a própria noção de propriedade adquire um novo significado daquele trazido pelo direito romano (dominium), ao contrário, tem-se tradicionalmente o direito à propriedade não como um título absoluto, sempre dependendo dos interesses da coroa, ou de seu representante (em mais tempos remotos esses interesses poderiam ser também no suserano feudal). Mesmo na atualidade, considera-se que os particulares tem um direito a propriedade fee simple e não alodial and tenure (direito absoluto da propriedade), sujeito às limitações que decorram da lei, de acordo com a supremacia da maioria parlamentar (CARVALHO apud Vieira, 2018, p. 57).
Pela dinâmica dos planos holandeses, tanto seu Plano Integrado (Impassingsplan), como em seu Plano de Urbanismo (Bestemmingsplan) estão descritas uma série de medidas provisórias de salvaguarda para as propriedades particulares em relação à inedificabilidade, algumas vezes sem indenizações ou compensações e existe uma lei que se denomina obstáculos ao direito privado (BelemmeringenwetPrivaatrecht) que regula ocupações temporárias de terrenos privados com vista à construção de obras públicas (Portugal, apud Vieira, 2018. p.117).
Já na França, mais que uma conceituação generalizada sobre a função social da cidade e da propriedade, a mescla entre misturas sociais é claramente explicitada em seu Código de Urbanismo (Code de l’Urbanisme). Esta legislação, em seu artigo 101, também fixa o dever do poder público em garantir a distribuição geograficamente equilibrada entre emprego, habitat, comércio e serviços.
O que se pode concluir que, enquanto a relativização da propriedade no Brasil, somente se deu em 2001 e é ameaçada se ser retirada em um futuro breve, essa noção é corrente, e aplicada ainda com maior força, em países com melhores condições e menores diferenças territoriais.

Regulação Territorial e limitações à propriedade privada

Como é de conhecimento público, o Brasil teve um “vácuo legal” de 28 anos entre sua independência (1.822) e a promulgação de sua Lei de Terras em 1.850. Antes disso se seguia o que exigia o direito urbanístico português.
No entanto, como afirma Martins (1981), mais que uma simples regulação territorial, essa lei veio com o objetivo de deixar a terra cativa em um momento que abolição da escravidão se avizinhava: “a terra no Brasil é livre quando o trabalho é escravo; no momento em que se implanta o trabalho livre, ela passa a ser cativa”.
Em outras palavras, tratava-se de substituir o escravo (que deixaria de existir por pressões internacionais) pela terra como principal patrimônio econômico, restrita contudo, a uma parcela ínfima da população.
Os primeiros regramentos mais específicos do solo urbano no Brasil seriam consolidados já no século XX, não raro sob o viés higienista característico no período. A questão social, como explicitaria o governo do presidente Arthur Bernardes (1922-1926), seria tratada como caso de polícia.
Enquanto isso, países como a Holanda promulgaram sua Lei da habitação (Woningwet), já em 1901, com a finalidade de dar uma resposta eficaz a uma grave carência social, que então se traduzia na escassez e nas péssimas condições dos alojamentos destinados à classe trabalhadora. Nos termos desta Lei, reforçou-se o papel que vinha sendo desempenhado pelas comissões municipais de estética urbana (schoonheidscommissies) em matéria de apreciação de projetos sujeitos a licenciamento municipal, tornando obrigatória a criação de comissões municipais de bem-estar (welstandscommissies), enquanto órgãos consultivos independentes, constituídos maioritariamente por arquitetos (Portugal, apud Vieira, 2018, p. 47). Esse plano foi revisado em 1921, onde passou a ser apto a regular a utilização do solo em geral e não apenas as extensões das áreas urbanas.
Na Inglaterra, desde 1909, a primeira lei de Planejamento (Housing, Town Planning Act), visava à melhoria das condições habitacionais através de subsídios públicos para construção de moradias.
Ainda que se possa traçar uma similaridade entre o caso inglês com o Brasil a partir das Vilas Operárias desenvolvidas sobretudo em São Paulo e em suas imediações. Há que se atentar que aqui, essa vivendas foram implantadas dentro ou próximas de plantas fabris e eram criadas com o intuito de permitir ao patrão controlar a rotina de vida de seu empregado, direcionando-a para que fosse um cidadão altamente produtivo.
Nota-se que, nos exemplos europeus e brasileiro, mesmo quando ações se mostram aparentemente coincidentes são motivadas por razões com profundas diferenças e objetivos.

Operações Urbanas

A impossibilidade de investimento direto e exclusivamente estatal em toda a cidade, sobretudo a partir de períodos de crise ou estagnação dos investimentos, fez-se que fosse desenvolvido “um tipo especial de intervenção urbanística voltada para a transformação estrutural de um setor da cidade” (Brasil, 2001, p. 78) denominadas Operações urbanas.
Conforme definido:

“As operações envolvem simultaneamente: o redesenho deste setor (tanto de seu espaço público como privado); a combinação de investimentos privados e públicos para sua execução e a alteração, manejo e transação dos direitos de uso e edificabilidade do solo e obrigações de urbanização. Trata-se, portanto, de um instrumento de implementação de um projeto urbano (e não apenas da atividade de controle urbano) para uma determinada área da cidade, implantado por meio de parceria entre proprietários, poder público, investidores privados, moradores e usuários permanentes”

A aplicação desse instrumento na lógica brasileira se caracterizou na maioria dos casos por potencializar áreas que despertaram (ou despertariam) interesse do capital privado sem, no entanto, realizar a maior parte dos investimentos voltados para além do mercado, sobretudo na implantação de unidades de interesse social, como no caso da Operação Urbana Águas Espraiadas de São Paulo.
Além disso, em comparação com os exemplos europeus, são aplicadas em perímetros muito maior, onde um controle restrito se torna mais difícil e, tomando o caso paulistano ao longo das últimas duas décadas, caracterizaram-se pela ênfase em ações inicias que potencializaram a valorização imobiliária em detrimento da construção de habitações de Interesse Social.
Na Holanda, a partir da década de 1990, com o aumento do preço do solo decorrente das limitações à construção, passam também os promotores privados a participar no desenvolvimento urbanístico, sendo certo que os municípios nunca perderam as funções e competências de desenvolvimento e promoção urbanística que historicamente exerceram de forma exclusiva (CARDOSO, apud Vieira, 2018, p. 53).
Com o intenção de não gerar cidades desiguais por conta dos projetos de parcerias público-privadas, onde o setor privado sempre irá se interessar por determinadas regiões da cidade, a Holanda utiliza-se de mecanismos urbanos que captam recursos a partir das mais-valias que provêm das intervenções urbanas do setor privado e aplica em outras regiões, impulsionando um desenvolvimento sustentável das cidades (red-for-green).
Próximo à ideia da operação urbana e do solo criado, existe atualmente na Holanda, um modelo para execução de obras urbanas que é realizado através de parceria com o privado com diversas contrapartidas como a concessão da exploração dos edifícios após a sua construção, sendo ele construído pelo setor privado, público ou empresa mista e a permuta de solo, onde o terreno é vendido para o município em troca de direitos de construção ou aquisição de lotes após a conclusão da urbanização do local realizada pelo município.
Na Inglaterra, a operação urbana se consolida com o setor privado (promotores urbanísticos) podendo atuar no urbano através da solicitação do development, uma execução urbanística através da planning permission, mediante negociação com o poder local. Vale ressaltar que a cobrança da Comunity Infrastructure levy é paga por quem promova novos projetos de construção de edifícios, tendo em conta as necessidades de financiamento das infraestruturas que não estejam já cobertas por outros meios.
Percebe-se aqui que os modelos europeus aqui demonstrados, a presença e intervenção estatal são muito maiores que no Brasil e o interesse público desponta com maior força sobre os interesses mercantis e imobiliários especulativos.

Habitação – Zonas de Interesse Social

Um dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade com maiores possibilidades de implantação e contribuição para cidades mais justas e acessíveis é a implantação de Zonas Especiais de Interesse Social (denominação brasileira) que se caracterizam como áreas específicas determinadas pelos planos diretores destinadas à produção de unidades habitacionais cujo público que estariam fora da dinâmica do mercado ou da legalização de áreas ocupadas e consolidadas inseridas em regiões centrais ou providas de infraestrutura.
A opção pela urbanização e regularização dessas áreas, além da evidente noção da habitação como direito essencial da vida do cidadão, passa pela constatação que a alternativa da remoção se mostraria mais cara e urbanisticamente penosa, com um passivo de infraestrutura a ser suprido, muito mais difícil de efetivação.
Na França, o Código de Construção e Habitação (Code de la Construction et de l´Habitacion), em seu artigo 302, prevê uma Cota de Habitação Social de 25% em municípios com mais de 3.500 habitantes, com exceção daquelas cidades que não tiverem demanda habitacional. Ainda assim, nesses casos, o percentual passa a ser de 20%. O não atendimento a essa exigência implica em pesadas multas (cerca de 51 milhões de euros anuais), cujo valor é revertido em construções de habitações sociais. Além disso, pela mesma legislação, o aluguel social em moradias feitas, pelo governo ou por um agente privado, destinado a esse fim.
No contexto holandês, com muito maior amplitude que a realidade brasileira que se limita a demarcar as ZEIS, os municípios são obrigados pela Lei da habitação (Woningwet) a avaliar as carências habitacionais momentâneas e futuras, assim, compram as terras em determinadas áreas a serem urbanizadas e repassam ao setor privado, o que tem sido um meio eficaz para dificultar a especulação e viabilizar a promoção dos alojamentos sociais.
Existem no país, essencialmente três formas de apoio para a política de habitação. Em primeiro lugar, o subsídio para o arrendamento, considerando a dimensão e o rendimento familiar. Uma segunda forma é a dedução integral dos impostos sobre o rendimento dos encargos decorrentes do pagamento de empréstimo garantido com hipoteca. E, finalmente, um terceiro, consiste na disponibilidade de alojamento social a que todos os cidadãos se podem se candidatar mesmo através das associações de habitação.
Pelo que foi aqui demonstrado, a disponibilização de unidades habitacionais nos países europeus é vista como prioridade. Preocupação que se justifica considerando a papel chave que exerce a moradia na dinâmica urbana.

A taxa de solidariedade

Apesar de não constar inicialmente no Estatuto da Cidade, esse instrumento foi previsto no Plano Diretor Estratégico de São Paulo, em seu artigo 112, e consiste na obrigatoriedade de disponibilização de 10% da área construída computável para habitação de interesse social (HIS) em empreendimentos que essa área seja superior aos 20 mil metros quadrados.
Isso significa que essa aplicação poderia inserir habitações HIS nos empreendimentos destinados a outros setores sociais, garantindo a ocupação e o convívio de diferentes classes do mesmo ambiente.
Essa ação contraria o discurso comum de setores conservadores de nossa sociedade que, no entanto, costumam ter em países europeus referências a serem seguidas. E nisso há concordância com o que defende esse artigo.
Na França realmente esse percentual não é aplicado. O Código de Urbanismo francês determina que as construções de imóveis coletivos de mais de doze moradias ou cuja área de superfície seja superior a 800m², disponibilizem pelo menos 30% das unidades familiares para moradia social — exceto os casos de habitações financiadas por empréstimo públicos de locação social.
Como pode ser percebido, o percentual francês supera em, ao menos, três vezes o que foi colocado na lei paulistana, pensada como uma inovação quase revolucionária. Além do fato que, em São Paulo, o recorte para um empreendimento se enquadrar nessa situação e mais de vinte vezes o que exige aquela legislação europeia.

Conclusões

O entendimento que a economia de mercado e a sociedade dela resultante necessitam, no tocante ao uso e a ocupação do solo, de restrições à propriedade privada e a sua consequente relativização na formação de cidades mais justas foi uma constante em contextos onde esse sistema já se mostra consolidado há séculos.
Em sociedades capitalistas europeias, consideradas desenvolvidas no interior do próprio ideário liberal, essa ideia já se mostra corrente e, mesmo considerando oscilações intrínsecas ao processo democrático, pode-se afirmar que exista um certo consenso em relação ao controle do solo urbano.
Na dinâmica urbanística brasileira ao revés, periférica mas integrante desse sistema, a noção de um controle maior sobre o solo e a própria função social da propriedade são conceitos recentes incorporados no arcabouço legal urbanístico e, em muitas situações ainda distantes da dinâmica real.
Em uma época de profunda divisão ideológica da sociedade brasileira, onde determinados conceitos são postos erroneamente sobre um enfoque superficial e preconceituoso, mas que sua aplicação incide diretamente no desenvolvimento das cidades; cabe uma análise mais aprofundada sobre o tema, para que as “soluções” que agora apontam no horizonte possam sobrepor o discurso raso e se apoiar na racionalidade e no acúmulo teórico desenvolvido durante décadas no Brasil e no exterior.

Referências Bibliográficas

BRASIL; Estatuto da Cidade, guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília, 2002.
MARTINS, J. S., O Cativeiro da Terra. Rio de Janeiro: Editora Lech, 1.981.
PORTUGAL, I. M. C.; Análise comparativa das leis de solos de Países Europeus. Campo Grande: Direcção-geral de Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, 2011
VIEIRA, G.; A Luta pela Reforme Urbana, Estudos de Caso sobre Legislações Estrangeiras – Operação Urbana Vila Ré- Cidade Patriarca (Trabalho Final de Graduação, Nono Semestre). São Paulo: Universidade AnhembiMorumbi, 2018.

* Geraldo José Calmon de Moura. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1998), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2002), mestrado em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e Doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de São Paulo (2016). Foi Diretor de Planejamento e Projetos em Guarulhos (2004-2008), Secretário Adjunto de Transportes e Vias Públicas em São Bernardo do Campo (2009-2010), onde coordenou o Programa de Transporte Urbano com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Gerente de Projetos na TTC Engenharia (2011). Atualmente é sócio proprietário da Planmur – Planejamento. Mobilidade e Urbanismo, integra a diretoria do Ruaviva – Instituto da Mobilidade Sustentável e é Professor de Urbanismo da Universidade Anhembi-Morumbi.

** Guilherme Vieira. Possui graduação em Turismo (2011) e atualmente é graduando de Arquitetura e Urbanismo, ambos pela Universidade Anhembi Morumbi. É estagiário na Planmur – Planejamento. Mobilidade e Urbanismo, monitor no Laboratório de Paisagismo da Universidade Anhembi Morumbi (LaPaisa) e Produtor Cultural.

Não me mande para Cuba, me mande para a França (ou para a Holanda) – bases urbanísticas para o Estatuto da Cidade * **