Esse artigo se baseia em tese de doutorado, intitulada “Diferenças entre a retórica e a prática na implantação do Metrô de São Paulo” por mim defendida em junho de 2016 sob a orientação da Professora Dra Raquel Rolnik na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Este trabalho nasce de uma pergunta simples: “por que, na aplicação de políticas públicas, em especial no metrô de São Paulo, existe uma diferença entre a retórica governamental e a prática de implantação?”.
O objetivo desse artigo é provocar, em um momento de alteração na administração do Governo do Estado de São Paulo, novas possibilidades estratégicas de implantação da rede metroviária considerando alguns aspectos que, ao longo da sua historia foram, como regra, esquecidos na dinâmica de implantação, sobretudo no tocante a relação entre as políticas de transporte às de uso e ocupação do solo.
Para isso traz um breve histórico na rede metroviária apontando os principais fatores em cada momento que afastaram a prática imperante de uma retórica de crescimento urbano.

TRANSPORTE E USO E OCUPAÇÃO DO SOLO, UM OBJETIVO NÃO ALCANÇADO
O discurso que vincula essas políticas data, no caso do metrô paulistano, da década de 1970, momento da implantação dos primeiros exemplos desses equipamentos na cidade, e foi acompanhado da constatação dos fortes impactos e das profundas alterações no uso do solo que essa infraestrutura causava no entorno.
No entanto, contrariando o discurso corrente e oficial, a prática cotidiana mostrou que essa integração não se verificou enquanto política pública ou, quando muito, apenas buscou considerar os impactos da valorização imobiliária como estratégia de captura/ transferência de recursos de parte dessa valorização nas cercanias do metrô para financiar a ampliação daquela infraestrutura.
Em um primeiro olhar sobre a malha metroviária atual da cidade, pode-se perceber alguns traços que intrigariam alguém que estivesse interessado no metrô como objeto de análise.
Sua inserção na malha urbana, enquanto transporte de massa de alta capacidade e estruturador urbano, nem de longe se aproxima de atender adequadamente à demanda por deslocamentos na metrópole. Aliás, o nome “metropolitano” – do qual deriva a palavra “metrô” – não condiz com o atendimento exclusivamente municipal do metrô de São Paulo, como mostra o mapa a seguir.
Pode-se perceber que se o metrô contribuiu para a estruturação da metrópole, essa estruturação não se deu de forma ampla.
Além disso, ao se tomar mais uma vez a implantação atual da malha metroviária, cruzando com dados socioeconômicos sobre o preço médio do m² quadrado em cada região, disponibilizados por uma empresa privada recentemente, percebe-se que, na maioria dos casos, há uma clara relação entre a presença da rede metroviária e a maior incidência de residências de famílias de classes mais abastadas, como mostra o mapa a seguir.

Mapa 1: Rede Metroviária atual com preço médio do m²
Fonte:Properati Dados apud Moura (2016)

A LINHA AZUL E O DISTANCIAMENTO DO DISCURSO DE TRANSPORTE E DE USO DO SOLO
A criação da empresa do Metrô, assim como a implantação das primeiras estações da Linha 1 (Azul), deu-se em um ambiente de exceção política, no auge da ditadura militar (1964-1985), e com possibilidades limitadas de participação popular.
Do ponto de vista da dinâmica territorial metropolitana, o momento estudado foi aquele em que a passagem da mancha urbana para fora dos limites da capital se consolidou, com maiores taxas de crescimento nas regiões periféricas em comparação com a área central.
O mapa a seguir apresenta as manchas urbanas de 1930 e 1970, e também a de 2004, fica nítida que a maior passagem da mancha para fora dos limites da capital se deu no período entre 1930 e a implantação do metrô, mas a posição do próprio metrô, expressa na publicação Estudos socioeconômicos, de tráfego e de viabilidade econômico-financeira, indicava que apenas os municípios de Osasco, Guarulhos, Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul já mantinham “relações bem definidas com o núcleo central.” (São Paulo, apud Moura, 2016, p. 61).

Mapa 2: Evolução da Mancha Urbana da RMSP – 1930-2004
Fonte: São Paulo apud Moura (2016).

À medida que a mancha urbana se expandia, o centro se tornava mais “central”, isto é, ampliava seu papel de destaque no tocante às oportunidades de serviço, enquanto reduzia seu crescimento demográfico. Ocorria, assim, uma expansão sem descentralização.
Em relação aos deslocamentos, essa dinâmica representou a necessidade de um número maior de viagens, com fortes características radiais (origem na periferia e destino no centro), cumpridas essencialmente pelo atendimento mais capilarizado, através da oferta viária e de veículos automotores (ônibus e automóveis).
A reboque dessa lógica, o traçado elaborado para a Linha 1, assim como para toda a rede, reforçava a dinâmica radiocêntrica, sem demonstrar a preocupação de indução de novas formas de crescimento da malha urbana, nem tampouco considerar outros municípios que não a cidade de São Paulo.
A rede metroviária apresentada inicialmente pelo consórcio HMD (em 1968), trazia em sua concepção uma forte marca radiocêntrica, característica esta já vinha de vários outros exemplos, com destaque para o Plano de Avenidas de Prestes Maia, que incentivava uma estrutura mononuclear e uma estrutura viária radial que induzia e intensificava o crescimento urbano nesse sentido (Santos, I. M., 2014, p.30).
A consolidação da lógica radiocêntrica para o metrô pode ser justificada pelo fato de que, em uma rede de transporte concebida supostamente a partir da demanda preexistente, essa tende a ser a solução mais “racional”, atendendo à demanda de uma cidade cuja dinâmica real era radiocêntrica, e não se apresentando, portanto, como indutora de outras formas de crescimento urbano.
Essa solução se mostrava contrária ao que propunha a política de uso e controle do solo. O Plano Urbanístico Básico (PUB), elaborado em 1968 mas apresentado no ano seguinte, contrariava as soluções urbanísticas anteriores que propunham e incentivavam a expansão da infraestrutura urbana (em especial, do sistema viário), que por sua vez deveria acompanhar o crescimento urbano. No PUB assume-se outra diretriz: o objetivo é disciplinar o crescimento da cidade.
Assim, o plano apresentava, em uma das seções do capítulo sobre uso do solo, a discussão sobre “Sistema de Circulação e Transportes” e previa uma rede de metrô com, aproximadamente, 615 quilômetros de extensão (ainda hoje longe de ser alcançada), que iria ao encontro da consolidação da cidade policêntrica a que alemejava (Deák, 2001, p.29).Essa contradição é mostrada no mapa seguinte.

Mapa 3: Comparação entre as redes metroviárias propostas pelo PUB e pelo metrô
Fonte: Metrô, 1968; São Paulo, 1969 apud Moura (2016).

Essas posturas mostravam um distanciamento entre o discurso metroviário e pelo discurso urbanístico, ou seja, entre os planos que orientariam as políticas de transporte e as de uso do solo corrente naquele período.

O CONTEXTO DE IMPLANTAÇÃO DA SEGUNDA LINHA E A ALTERAÇÃO INSTITUCIONAL
A concepção da segunda linha (que posteriormente seria chamada de “Linha 3”) ocorreu em um momento de retomada e intensificação das obras metroviárias, na gestão de Figueiredo Ferraz (1971-1973), após um período de diminuição nesse ritmo durante a administração de Paulo Maluf (1969-1971), quecen trou suas ações em intervenções viárias.
Talvez este tenha sido o momento no qual as políticas de transporte mais se aproximaram das políticas urbanas e das orientações e diretrizes dos planos.
A expansão urbana pautada pelo rodoviarismo acabou produzindo um sistema viário caracterizado pela fragmentação e pelo subdimensionamento das vias, com orientação predominantemente no sentido Norte-Sul – o que não favorecia uma conexão eficiente com a região central – que por sua vez reforçava o papel estrutural da ferrovia enquanto eixo de ligação entre os bairros residenciais ao Leste e ao Centro, a Oeste.
Nesse sentido, o forte crescimento populacional que a região apresentou ao longo do século XX não foi acompanhado por uma estruturação urbana adequada, desde o ponto de vista viário e da rede de transportes coletivos. Nas palavras de Ramalhoso (2013, p.68), “tratava-se de uma área cuja urbanização ainda estava por se consolidar”.
Além disso, a segunda linha implantada, ao passar internamente ao anel central, a Linha Leste-Oeste reforçava naquele momento ainda mais o caráter radial do metrô, o que implicava na reprodução tanto da dinâmica vigente, uma vez que se preocupava em atender à demanda existente, como de alguns dos problemas apontados na implantação da Linha Azul, tais como o reforço da configuração radiocêntrica paulistana.
Entretanto, ao contrário do momento anterior à concepção do Metrô, o planejamento e o desenvolvimento do metrô passavam a ser feitos por equipe própria e não mais por consultorias externas (e, por vezes, estrangeiras). Fruto do próprio crescimento da empresa, essas foi uma importante mudança estrutural que marcaria definitivamente o período, e a Linha Leste-Oeste foi a primeira a ser projetada e executada nesse modelo (Ramalhoso, 2013, p.106). No bojo dessa alteração, a rede metroviária sofreu importantes alterações como mostra o mapa seguinte.

Mapa 4: Comparação entre as propostas para a Linha Vermelha
Fonte: Ramalhoso (2013) apud Moura (2016).

Nesse contexto, embora a principal justificativa para a implantação da Linha Leste fosse reconhecidamente o combate aos congestionamentos, o documento Viabilidade da Linha Leste apontava também outros fatores: “A Linha Leste proporcionará um crescimento dos valores imobiliários na região, encorajando o desenvolvimento e intensificando o uso do solo” (Metrô, 1973, p.5).

EMURB, CURA E ZML
Não foram apenas os planos urbanísticos e setoriais que interferiram na criação do metrô (e por ela foram influenciados). Sua implantação foi relevante também no âmbito institucional e da gestão pública, dentro de um contexto que visava interferir diretamente na dinâmica urbanística através de obras e outras ações.
Destaca-se aqui a fundação da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), em 1971. que tinha como objetivo fazer cumprir as diretrizes estabelecidas no PDDI que “indicavam principalmente a implantação de uma rede de Metrô na cidade, a implantação das vias expressas, bem como a reurbanização de áreas situadas ao longo da primeira linha do Metrô” (Heck, 2004, p.86).
Além disso, havia um esforço em capturar uma parte da valorização dos terrenos lindeiros às estações, decorrente da implantação de obras públicas, através da aquisição de áreas estratégicas para a instalação de equipamentos públicos e posterior negociação de áreas remanescentes valorizadas (Santos, 2004, p.58). Estabelecia-se, assim, ainda que não exclusivamente, uma estreita relação entre essa nova empresa e a Companhia do Metrô.
A Emurb exerceria o papel de executora das obras nas áreas lindeiras às estações, abrangendo desde a etapa das desapropriações até a reurbanização propriamente dita. Eram os “planos integrados de reurbanização”, realizados em conjunto com a Coordenadoria Geral de Planejamento – Cogep, precursora da Secretaria Municipal de Planejamento (Sempla).
Ademais, contribuíram para estreitar as relações entre as políticas urbanísticas e metroviárias no o projeto Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada – Cura, elaborado pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), e sua aplicação na cidade de São Paulo.
O Projeto Cura foi concebido para ser a “complementação de infraestrutura em áreas de ‘vazios urbanos’” (Fest, 2005, p. XI). Tinha por atribuições “racionalizar o uso do solo urbano, melhorar as condições de serviços de infraestrutura das cidades e corrigir as distorções causadas pela especulação imobiliária” (Azevedo; Andrade, 2011, p.64). O Projeto Cura se inseria na realidade paulistana como uma oportunidade de viabilizar a execução de planos de urbanização cujos projetos vinham sendo desenvolvidos pela Emurb, justamente nessas áreas próximas às estações (Lucchese, 2004, p.214).
Também, do aprendizado com a primeira linha e dentre as muitas alterações que a legislação vigente (de 1972) sofreu, destacam-se algumas iniciativas que buscavam interferir nos territórios periféricos, fomentando a implantação de infraestrutura a partir da indução da malha metroviária.
Uma das alterações nesse sentido foi a transformação de parte das Zonas 8 (Z8) – concebidas na Lei de Zoneamento (1972) como Zonas de Uso Especial, cujas regras ficavam condicionadas à regulação posterior – em Zonas Metrô Leste (ZML). A criação da ZML foi a tentativa mais relevante de se vincular a chegada do metrô com as políticas de uso e ocupação do solo.
Contudo, para alguns especialistas, a ZML foi criada com outros objetivos. Para autores como Cardoso (1983, p.3), a criação da ZML se configurava como uma primeira tentativa de conter a especulação e induzir um uso lindeiro previamente planejado, através da criação de áreas de interesse ao longo de toda a linha do metrô leste. Já Santos (2004, p.60) acredita que o objetivo inicial da criação da ZML era “congelar a futura ocupação nessas áreas, até que houvesse uma regulação adequada para elas, pretendendo com isso, preservá-las da ação especulativa”.
No entanto, no final dessa mesma década, uma importante mudança institucional tenderia a comprometer esse esforço, como consequência da situação econômica, sua estadualização.
As justificativas dessas alterações foram de natureza fiscal, pois no momento que os investimentos minguavam, a estadualização do metrô vinha como uma possibilidade de manutenção da qualidade da rede e do seu ritmo de expansão, dadas as maiores possibilidades de investimentos do governo estadual.
Na prática, ao menos em um prazo mais curto, o segundo objetivo não se verificou, pois a intensificação de ampliação da rede metroviária durante a década de 1980 não ocorreu conforme imaginado.
Essa nova condição causada pela estadualização do metrô criou, ao longo do tempo, diferentes relações com os demais agentes públicos e privados produtores do território, com ampliações e restrições de poderes, maior dificuldade de comunicação, retirando da instância responsável pela regulação do uso do solo, o município, a responsabilidade pela política de transporte metroviário.
Ainda que existisse uma instituição em âmbito estadual responsável pelo planejamento metropolitano, a Emplasa, a relação mais direta entre as políticas metroviárias e as de uso do solo ficou mais difícil a partir da estadualização do metrô

LINHA VERDE E A DÉCADA PERDIDA
Além da estadualização do metrô, o período de implantação da linha verde ficou marcado no Brasil e em toda América Latina por uma profunda estagnação econômica decorrente das duas crises do petróleo (1973 e 1979), que representaram, tanto no âmbito nacional, como nas políticas locais, uma enorme dificuldade na obtenção de recursos e, por consequência, na viabilização de implantação de infraestruturas. Esse período foi denominado “a década perdida”.
Tanto a falta de recursos, devido ao colapso econômico latino-americano, como o processo de redemocratização do país influenciariam o discurso oficial do metrô no período e também sua prática.
A pressão por uma maior participação social nas esferas de decisão advinda do processo de redemocratização levou ao entendimento de que a descentralização seria o caminho mais lógico para alcançar esse objetivo, o que seria posteriormente confirmado com a promulgação da Constituição de 1988. Por outro lado, a crise econômica e a consequente perda de capacidade de investimento (e de influência) do Estado acarretaram na necessidade de uma revisão dos limites da atuação estatal.
Contrastando com o período anterior, em que a ênfase do discurso metroviário oficial recaía na preocupação com o controle urbano como resposta ao crescimento populacional e à melhora da qualidade de vida, o discurso predominante na década de 1980 centrou suas atenções em outras duas questões.
Em primeiro lugar, consequência da situação econômica do período, foi uma constante nesse discurso a referência à crise institucional que se vivia. Em segundo, estreitamente relacionado com a crise institucional e financeira, foi a busca por novas formas de financiamento e pelo equilíbrio financeiro da empresa com a possibilidade de participação da iniciativa privada.
Para resolver essas questões o Metrô recorreu a uma medida concreta e objetiva de abandono das ações de melhorias urbanas em nome da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da empresa, à medida que a iniciativa privada entrava como partícipe desse processo.
Em outras palavras, ao deixar que o capital privado protagonizasse as intervenções, sobretudo ao redor das estações, o metrô substituiria a preocupação com a requalificação urbanística pela valorização imobiliária decorrente da implantação da rede metroviária.
Com essa medida, praticamente anulava-se o esforço presente na criação da Zona Metrô Leste (ZML) de inserir no zoneamento municipal condições para que intervenções urbanísticas viabilizadas pelo Metrô fossem realizadas no entorno das estações.
Coerente com seu novo discurso, o Metrô propôs, em 1982, uma nova rede básica. Reinserindo a ideia dos ramais, essa proposta se assemelhava com a do consórcio HMD, de 1968, predominantemente radiocêntrica, como mostra o mapa seguinte.

Mapa 5: Rede Básica do Metrô – 1982
Fonte: Martins (2002) apud Moura (2016).

Dessa nova rede, haveria que se estudar qual linha, entre Verde e Amarela, deveria ser priorizada em uma dinâmica de ampliação da rede. Na metodologia dessa priorização, muitos fatores podem ser discutíveis conforme mostrada na tese em que se baseou esse artigo (Moura, 2016) e, principalmente, no trecho a ser iniciado.
A prática mostrou que a opção de priorização na implantação da Linha Verde se deu basicamente na Avenida Paulista e bairros próximos, e ali se manteve por quase uma década.
A conclusão do estudo de viabilidade enaltecia a importância da Avenida Paulista enquanto “novo centro metropolitano”, tanto pela concentração de atividades comerciais como por suas taxas de crescimento. Por isso apontava a necessidade de priorização de implantação de um sistema de alta capacidade na região (Metrô, 1980, p.18).
Essa postura claramente ratifica a decisão de implantação da malha metroviária em áreas consolidadas e onde os interesses do mercado afloram com maior força. Percebe-se, assim, que as regiões priorizadas já apresentavam na época maior concentração de equipamentos públicos, sobretudo em comparação com as zonas Leste, Norte e Sul, bem como maior incidência de áreas residenciais de médio e alto padrão.
Assim, entende-se que existe uma parcial contradição com os objetivos explicitados inicialmente. Isto é, as áreas apontadas pelo estudo como aquelas que tenderiam a se adensar de modo mais intenso não seriam aquelas que seriam consideradas prioritárias para a implantação da rede metroviária.
Além disso, com relação aos demais objetivos, é evidente que, ao apenas buscar atender a demanda existente, sem pretender reverter a dinâmica urbana, a implantação da Linha Verde não contribuiu para o desenvolvimento econômico de outras regiões e tão pouco para reverter a dinâmica urbana vigente.

LINHAS AMARELA E LILÁS E A LÓGICA NEOLIBERAL
Após uma década de estagnação e crise econômica, a partir da derrocada financeira vivida por vários países latino-americanos na década de 1980, afundados em enormes dívidas externas como consequência direta das duas crises do petróleo (1973 e 1979), uma nova concepção de Estado e de gestão começou a ser desenvolvida.
Para os defensores dessa nova concepção, as causas da crise latino-americana eram essencialmente duas (Bresser-Pereira, 1991, p.6): O excessivo crescimento do Estado e o descontrole das contas e do déficit público.
A visão hegemônica nesse encontro era a de que, para resolver a crise, seria necessário recorrer tanto a reformas de curto prazo, que consistiam na busca pelo equilíbrio fiscal, como a medidas de médio prazo voltadas para a redução do Estado e a liberalização do comércio internacional.
As privatizações de alguns serviços de caráter público, até então sob a tutela direta do Estado, poderiam atender em parte essa demanda por transporte e muitas das orientações colocadas foram seguidas pela Companhia do Metrô paulistano, influenciando decisivamente em medidas tomadas nesse período.
Especificamente no caso do Metrô, a nova situação macroeconômica condicionou uma sucessão de alterações nas históricas fontes de recursos que viabilizavam a implantação e a expansão da rede metroviária até aquele momento.
Dentre as possibilidades para viabilizar o financiamento da infraestrutura pública, tal como a rede metroviária, destacou-se a consolidação das parcerias público-privadas – PPPs (Barros, 2005, p.7).
Esse modelo de parceria se caracteriza como:

“Um contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do qual se atribui a um sujeito privado o dever de executar obra pública e (ou) prestar serviço público, com ou sem direito à remuneração, por meio da exploração da infraestrutura, mas mediante uma garantia especial e reforçada prestada pelo Poder Público, utilizável para a obtenção de recursos no mercado financeiro.” (Justen Filho, 2005, p.549)

Com a maior parte das PPP(s) paulistas sendo realizadas na área de transportes, o Metrô de São Paulo adere a esse modelo na ampliação de sua infraestrutura já no primeiro momento, com a construção de sua Linha 4 (Linha Amarela), a primeira PPP concretizada no Brasil.
No entanto, a Linha 4-Amarela foi viabilizada por meio de um modelo de PPP denominado “concessão patrocinada”, o que significa que os recursos privados poderiam ser captados tanto diretamente através da arrecadação tarifária, como por meio da contraprestação pecuniária do Estado.
Dadas as condições estabelecidas, evidencia-se um modelo que se mostra bastante seguro para o concessionário, uma vez que, além de não ser ele o principal responsável pela construção da maior parte da infraestrutura (atividade que cabe ao poder público) e, por consequência, da maior parte dos investimentos iniciais, ele recebe todo o valor da contraprestação já nos primeiros quatro anos da concessão.
Além disso, o contrato ainda conta com cláusulas de proteção sobre uma eventual queda da receita no caso de diminuição da demanda de passageiros.
Caberia o questionamento até que ponto o processo licitatório pautado em interesses comerciais poderia “desvirtuar a natureza de uma linha de transporte público de massa, em São Paulo” (Tupinambá, 2007, p.25).
Esse desvirtuamento viria da forte capacidade de influência que esses novos agentes teriam em questões que, a priori, caberiam ao poder público decidir. Ainda que pressões ocorressem desde os primórdios da implantação da rede metroviária, essa nova configuração de forças e esse novo papel do Estado impõem, indiscutivelmente, um novo patamar na esfera de decisões.
As consequências seriam sentidas tanto na ênfase adotada no discurso, como nas ações que daí decorreram posteriormente.
Se na década de 1980 a tônica do discurso oficial estava na preocupação com a crise financeira que afetou, inclusive institucionalmente, a Companhia do Metrô e, por consequência, levou à busca por novas formas de financiamento da empresa e da expansão de sua rede, passando, ademais, pela discussão sobre a questão metropolitana, na década seguinte, o discurso acompanhou e intensificou essa abordagem, introduzindo, no final do período, novas questões.
Nesse contexto, para ampliar decisivamente a rede e uma vez que o metrô (“politano”) continuava municipal (atendendo apenas a capital), buscavam-se saídas para compreender a rede estrutural de transportes sobre trilhos como sendo composta tanto pelo Metrô como pela rede da CPTM (que passaria a operar os sistemas da Fepasa e CBTU).
O período se iniciava com uma nova preocupação: a implantação metroviária em áreas mais valorizadas e com maior concentração de empregos. Nos anos subsequentes, ganhava corpo no discurso duas outras questões que se relacionavam ao fator de localização: urbanização do entorno da estrutura metroviária e captura de mais-valia/potencialização dos serviços auxiliares ao metrô. Com relação ao entorno, pode-se perceber o reconhecimento da influência da intervenção metroviária nessas áreas.

“No contexto urbano, por sua característica estruturadora e pela valorização imobiliária que promove em seu entorno, o sistema metroviário é um forte agente de renovação e reordenação do uso do solo” (Metrô, 2000, p.15)

“A expansão da rede metroviária também contribuirá de forma mais efetiva para o desenvolvimento urbano da região, reforçando o papel estruturador e articulador desse sistema de transporte de alta capacidade”. (Metrô, 2002, p.7).

Se essa posição podia significar um retorno à ênfase em intervenções urbanas realizadas no entorno, interrompidas na década de 1980 por restrições econômicas, a postura no início da década de 1990 se voltava para o vínculo urbano, mas sob um viés financeiro. Nesse novo ambiente, o discurso dominante via a relação do Metrô com a cidade como uma estratégia de captura de parte dos ganhos que a intervenção metroviária causava.
Assim, percebe-se aqui uma clara coerência entre o discurso predominante que o Metrô utilizava naquele tempo e o contexto em que estava inserido, ou seja, uma época em que as recomendações internacionais pregavam, acima de tudo, a preocupação com a austeridade financeira, recomendando, inclusive, a adoção de medidas de saneamento de suas contas através da passagem de algumas de suas atribuições para o setor privado (privatização); um momento, também, no âmbito nacional, de escassez de financiamento público para infraestrutura e de disponibilidade (desde que garantida a austeridade) de financiamento e “parcerias” com financiadores externos. O Metrô de São Paulo encampou claramente esse ideário em seu discurso e também em boa parte de sua prática.
Durante esse período (1990-2006), duas linhas foram iniciadas: Amarela e Lilás. Em 1991 foi apresentada, finamente, uma nova revisão da rede básica do Metrô, que, em síntese, é muito similar à rede implantada atualmente, como mostra o mapa a seguir.

Mapa 6: Rede Básica do Metrô – 1991
Fonte: Martins (2002) apud Moura.

Em suma, a proposta de 1991 enfatizava a oferta da rede na região Sudoeste do município, porção do território com maior incidência de populações mais abastadas economicamente e com maior oferta de empregos e, especificamente, no caso da Linha Amarela, atendia à região em que se consolidavam novas centralidades.
Essa concepção concretiza de forma inequívoca a análise de Villaça e Zioni (2005) sobre a implantação da infraestrutura metroviária. Para esses autores, a implantação do metrô de São Paulo acompanha, historicamente, os movimentos realizados pelas classes mais abastadas, ou seja, suas migrações e alterações de localização de moradia e emprego.
Assim, a Linha Amarela previa atender lugares como a Avenida Faria Lima, nova centralidade em consolidação, e, por isso, região concentradora de empregos, além dos bairros de Pinheiros e do Butantã, locais com alta incidência de moradias de classe média e classe média alta, e com polos de empregos como a Cidade Universitária e, finalmente, o bairro do Morumbi, local de concentração de moradias das classes média alta e alta.
Se era inegável o fato de haver uma maior integração entre as linhas existentes no traçado escolhido, essa opção também acarretava em uma rede mais concentrada em determinadas porções do território, pois a Linha Amarela percorria uma área que, na escala municipal, já era melhor atendida pelo metrô do que regiões como a Zona Leste ou a Zona Norte. Reforçava-se, assim, a ideia de o metrô, nos moldes implantados, ser um elemento profundamente concentrador de oportunidades.
Isso se explica no fato que, para que a operação de uma linha metroviária fosse concedida à iniciativa privada com um mínimo de viabilidade, seria necessário que a rentabilidade da linha estivesse em patamares minimamente aceitáveis para o mercado.
Nesse sentido, a localização e a inserção urbana da linha concedida passavam a ser condicionantes para seu sucesso enquanto modelo de negócio, e aí, passava a ser interessante um traçado que tivesse uma demanda caracterizada pela constante troca de passageiros, com altas taxas de embarque e desembarque.
Ainda que, curiosamente, a questão social também fosse apresentada como argumento à implantação desse modelo neoliberal, é evidente que as áreas com maior incidência de população com renda de até 8 salários mínimos – Campo Limpo, Taboão da Serra, Embu, Regis Bittencourt e Raposo Tavares – seriam justamente aquelas não contempladas diretamente no primeiro trecho implantado.
Assim, a consolidação dessa estratégia de implantação da rede coloca duas questões sobre a Linha Amarela.
Primeiro, se são de fato objetivos do Metrô a inserção urbana e a busca por soluções integradas com os aspectos urbanísticos, em uma época na qual os conceitos de qualidade urbanística já estavam vinculados à distribuição de oportunidades no território, até que ponto a priorização de áreas com maiores incidências de populações com rendas mais altas contraria esses anseios?
Segundo, ao optar por um modelo operacional gerido pela iniciativa privada, em que medida áreas com maiores demandas e com maior potencial de retorno financeiro influenciam a opção e o traçado adotados?

CONCLUSÕES
Sendo, o objetivo desse artigo identificar as razões que efetivamente afastaram a prática da implantação metroviária da retórica oficial, sobretudo no tocante ao seu vínculo com as políticas e com o planejamento urbano. Uma ideia se destaca preliminarmente que esse distanciamento não ocorreu de forma linear ainda que se mostre mais como regra que exceção.
Esse distanciamento por sua vez, não se deu simplesmente por um afastamento entre a retórica e a prática governamental, sendo justificado ora por uma diferença entre retórica e prática, mas também por outras, causada pelo distanciamento entre o discurso metroviário e pelo discurso urbanístico; já, em outras ocasiões, o afastamento teria se dado por motivos externos à essa dinâmica. Finalmente, foi apenas a dinâmica metroviária, inserida dentro de uma determinada lógica, que se afastou dos interesses urbanísticos.
Mas, contraditoriamente, pode-se afirmar que, como regra e apesar do distanciamento corrente, houve um esforço constante, ainda que retórico e institucional, no sentido de se aproximarem os discursos e as práticas de planejamento de transportes e de uso e ocupação do solo.
Entretanto, o insucesso na prática decorre na diferença existente nos objetivos implícitos em cada uma dessas propostas, ou seja, nos reais interesses a serem considerados em cada plano.
Enquanto o PUB (e demais planos urbanísticos) visava estabelecer uma nova forma de organização urbana para toda a metrópole, indicando segundo as convicções presentes em cada época, os “caminhos” para que a cidade e os municípios vizinhos se desenvolvessem contrariando inclusive, a dinâmica até então imposta e propondo uma estruturação a partir da descentralização com a criação de novas centralidades e da ortogonalidade viária; a rede metroviária desenvolvida e alterada pela Companhia do Metrô visou sempre atender “apenas” à demanda existente, isto é, aquela construída a partir e tão somente da cidade previamente existente.
No município de São Paulo, essa postura significou buscar atender mais uma vez as necessidades de uma cidade radiocêntrica, influenciada sobremaneira pelas intervenções pautadas, sobretudo, pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia, sem considerar que a implantação de uma rede de transportes de alta capacidade nesses moldes reforçaria e intensificaria ainda mais a indesejável dinâmica hegemônica concentradora e radial.
Pelo que foi apresentado, pode-se estabelecer que a postura e a metodologia adotada na elaboração da primeira Rede Básica (e que já vinha sendo adotada em estudos anteriores) de se pensar um plano e uma rede de transportes a partir da situação (demanda) atual criou um “cultura” no ambiente metroviário, e possivelmente em outras empresas de transporte no Brasil devido à influência que o metrô exerceu sobre todo o setor, que, em menor ou maior grau, foi replicado ao longo de sua história e na montagem das variadas revisões de rede ocorridas posteriormente.
Tupinambá (2007, p.21), mostra que, na elaboração de uma rede de transporte, a metodologia consolidada sempre passa essencialmente pela análise (“diagnósticos”) das condições que geram as viagens, da oferta de transporte e da demanda potencial (“necessidade das viagens da população”, para o autor), ou seja, propõe a rede somente a partir de informações referentes somente à situação atual e, dessa forma, restringe-se a realizar uma avaliação a partir da dinâmica consolidada e assim, finalmente, reforça o que se tem, contrariando um dos objetivos de uma política urbana que entenda como prejudicial à dinâmica atual.
Assim, a histórica preocupação na montagem de uma rede estruturante de transporte se apoiando apenas na demanda atual (largamente utilizada pelo metrô) se configura em uma resposta decisiva sobre o afastamento entre as duas práticas, de transporte e urbanísticas, uma vez que o papel da segunda, por princípio e na prática, seria o de pensar uma cidade além da situação atual.

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*Geraldo Moura – Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1998), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2002), mestrado em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e Doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de São Paulo (2016). Foi Diretor de Planejamento e Projetos em Guarulhos (2004-2008), Secretário Adjunto de Transportes e Vias Públicas em São Bernardo do Campo (2009-2010), onde coordenou o Programa de Transporte Urbano com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Gerente de Projetos na TTC Engenharia (2011). Atualmente é sócio proprietário da Planmur – Planejamento. Mobilidade e Urbanismo, integra a diretoria do Ruaviva – Instituto da Mobilidade Sustentável e é Professor de Urbanismo da Universidade Anhembi-Morumbi.

O METRÔ DE SÃO PAULO E A (FALTA DE) RELAÇÃO COM AS POLÍTICAS DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO*